Quando quero contar sobre mim, são livros o que conto!

Carlos Lúcio Gontijo

(…)Filho, tu ainda tens mãe / É o estribilho da canção que ouço / Ergo-me com as forças de “coluna prestes” / Faço em mim a revolução de que falavas / Então eu creio, respiro profundamente / No ar cheiro de seio que me alimenta/ Mãe, sinto-me menino novamente (…)

Aprendemos muito cedo que todo exército, urna vez embebido em sangue, é vermelho, nem precisa ser comunista. Em princípio, todos os países são capitalistas, vivem do trabalho, da produção, comercialização e do lucro. A diferença entre as nações, assim, está no sentido que se dá à administração e ordenamento da riqueza criada com o esforço e o suor de todos: em nome de uma minoria, se no liberalismo; de uma maioria, se no socialismo.
Há, portanto, dois caminhos a serem discutidos ou seguidos por livre determinação dos povos: democratização dos mecanismos da economia, para os que vivem no liberalismo; ou maior abertura e incremento do intercâmbio no campo da comercialização, para os que praticam o socialismo, conforme ao que hoje assistimos acontecer na China, com uma população de 1, 3 bilhão, que, apesar de todos os incentivos e exigências do serviço governamental de controle da natalidade, se nos apresenta com um crescimento anual estimado em cerca de 1 5 a 20 milhões de indivíduos.
Todavia, no momento, o que estamos decididos a comentar não é sobre a existência ou não do comunismo, mas a extrema realidade de que a civilização não pode encaminhar-se para o futuro sem que se ergam instrumentos capazes de minorar o recrudescimento da fome e da miséria, que atinge um número cada vez mais elevado de pessoas.
Foi exatamente essa a principal mensagem que nos fora deixada pelo líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, que ficou famoso em todo o mundo por causa da “Coluna Prestes” (que se deu em 1924, quando ele ainda não se havia integrado às lides do comunismo, a que abraçou em 1930); mas que tem em seu idealismo a sua essência mais benfazeja, pois, sem firmeza de propósito e de caráter, ninguém consegue mobilizar pessoas em torno de uma idéia ou arregimentar alguma simpatia de terceiros pela causa por que luta, seja ela política, cientifica, religiosa. Em síntese, o materialismo histórico não pode pretender resumir toda a filosofia comunista no fim do comunismo na Rússia ou na queda do muro de Berlim. Isso seria jogar fora muitos ensinamentos e lições de que o progresso da humanidade não deve, de maneira alguma, abrir mão.
Isso posto, vamos à nossa experiência, ao nosso travar conhecimento com o nome e a figura de Luís Carlos Prestes, de que ouvimos falar ainda menino, com uns oito, nove anos. Minha mãe, Bettv Rodrigues Gontijo, falecida no dia 19 de dezembro de 1989, ocasião em que escrevemos o poema, que, em parte, usamos na abertura desse artigo, era uma mato-grossense da gema, nascida à beira do Rio Araguaia, numa fazenda de propriedade de meu avô Joaquim Alcides, um pernambucano cabra-da-peste, bravo que só ele, destemido e casamenteiro, que se enviuvou de três mulheres, com as quais teve um total de 19 filhos.
Pois bem, Luís Carlos Prestes, fugindo de valorosos caçadores (mais tarde, politicamente, cassadores) de comunistas, num tempo em que os mesmos representavam a personificação do mal, os comedores de criancinhas, foi dar às portas da fazenda do pastor protestante Joaquim Alcides, o meu avô pernambucano. Lá se aportou e foi bem recebido, com toda a honraria de um admirador embevecido. Passados dois, três dias que o cognominado “Cavaleiro da Esperança” se achava “hospedado” na casa do pastor, fazendeiro e simpatizante da causa comunista, eis que, sem mais nem menos, um capataz vem correndo avisar que a polícia já se encaminhava para o recinto. Da janela, Joaquim Alcides avistou a turma de fardados.
Era a milícia chegando. Não dava tempo para nada: correu, pegou Luís Carlos Prestes pelos braços e o meteu dentro de um guarda-roupa, retornando à sala e postando-se bem no centro com uma Bíblia nas mãos e em tresloucada oração. Assim que entraram no casario, os soldados foram logo lhe perguntando se havia visto Luís Carlos Prestes. Ao ouvir o nome do comunista, o pastor se pôs a benzer-se e a gritar freneticamente: sai Demônio, bicho do Diabo, Satanás… Bem de acordo com a propaganda que se fazia de Prestes. Dessa forma, pensando estar lidando com um louco, demente de matar com pau, os tais soldados se mandaram, pois não tinham tempo a perder.
Luís Carlos Prestes ainda ficou mais algumas semanas nos arredores, chegando até a assuntar meu avô sobre aquela que seria muito tempo depois minha mãe, porém foi logo demovido de seu sonho porque o pastor foi resoluto e enfático em sua resposta: a moça já está comprometida com outro. Prestes, então, já tomado de amizade pelo fazendeiro-pastor, resolveu afastar-se da casa, montando acampamento em mata de difícil acesso, em meio aos alagados, a fim de não comprometer seu benfeitor, caso fosse descoberto.
Um dos meus tios, um meninote que se incumbira de pegar a canoa todos os dias para levar uma marmita de comida para Prestes, acabou recebendo como pagamento uma rápida iniciação à sua alfabetização. Era o líder comunista, que, se vivo estivesse, teria completado 100 anos no dia 3 de janeiro, já naquele tempo distante, mostrando-se ciente de que reside na capacidade intelectual do povo a principal riqueza de um país, seja para fazer uma revolução, dizer não à submissão ou simplesmente conduzir a mão-de-obra à reciclagem e à adaptação aos meios de produção cada vez mais informatizados.
Enfim, graças a Deus, ou às leis da casualidade para os que não crêem, as pessoas andam, democraticamente, visualizando nas diferenças de pensamento, credo e cor não um problema, mas um tesouro à nossa disposição, evitando aliar-se ao lado dos que levam o divergir ao grau de delito de consciência. E, por isso, inventam perseguições, torturas e guilhotinas.

(Artigo publicado no DIÁRIO DA TARDE,
na edição do dia 05/01/98, na página “Debate”, e inserido, junto com a biografia, no romance O Contador de Formigas.)