Quando quero contar sobre mim, são livros o que conto!

                                    Carlos Lúcio Gontijo

                                   

               Ainda sigo pelo caminho emocional que minha mãe me traçou na infância. No álbum de família acostumei-me com sua imagem, amistosamente, em meio a índios numa fazenda chamada Santo Antônio, lá pelas bandas do pantanal mato-grossense onde nasceu e que ela derramava em seus olhos perdidos em barrancos e alagados, carregando mistérios de curva de rio.

       Minha mãe tinha um salão de beleza. Naquele tempo a tinta era preparada através de mistura de substâncias, e minha mãe era perita nessa arte, além de fazer permanentes e penteados com belas “armações” à custa de muito engenho e laquê.

        Democrática e despida de preconceitos e intolerâncias, minha mãe Betty Rodrigues Gontijo atendia a todos, incluindo o hoje chamado terceiro sexo e, claro, as madames – que deixavam o seu salão perfumadas e prontas para os bailes daquele tempo.

       Lembro-me de amiga chamando-lhe a atenção quanto ao comportamento de uma de suas freguesas. Betty, aquela mulher é mal falada. Dizem até que ela é prostituta. Ao que mamãe respondeu: E daí! Que nos interessa o que ela faz com o corpo? Ela vem aqui, respeita todas nós e nunca deixou de me pagar. E que deixemos o preconceito de lado; lembremos Jesus Cristo: “Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra”.

       Mamãe também costurava. Era ela quem fazia as minhas calças e camisas. Muitas vezes varava as noites na costura com uma amiga que tinha o apelido de “Fina”. O quintal era grande e dele ela fazia um “minipantanal”: plantas por todo lado (desde a entrada da casa), árvores frutíferas, um laguinho, cachorros, patos, marrecos, gansos, galinheiro, chiqueiro, tartarugas, papagaio, arara, tucanos, coelhos, porquinhos-da-índia; um mico que, depois do almoço sentava no sofá com o gato apoiado em suas pernas e se punha a lhe catar pulgas às quais comia. Enfim, com toda essa bicharada à minha volta, eu tive uma bela infância.

       Ao alpendre de minha casa corriam os pedintes e os loucos, sob a certeza de que mamãe os trataria bem, dando-lhes um prato de comida, um café. Eram poucas as geladeiras existentes na Santo Antônio do Monte daquela época e mamãe se esmerava em manter sempre muito gelo, pois a qualquer momento a Santa Casa poderia precisar do produto para alguma cirurgia. Até o Padre Paulo Michla, grande benfeitor da cidade, aparecia à procura de gelo para cirurgias, tornando-se muito amigo de minha mãe.

       Por ser assim, um pássaro com rasantes voos de bondade desprendida, ao se deparar com os meus primeiros versos sob o colchão da cama em que eu dormia, mamãe não pensou se poesia era coisa lucrativa ou não. Ela apenas se deixou guiar pela certeza de que era um dom, uma missão, e que antes de tudo era caminho para a felicidade, uma vez que a alegria de viver está em descobrirmo-nos, encontrando o nosso lugar no mundo.

       Quando lancei o primeiro livro em 1977, mamãe andou o bairro Senhor Bom Jesus, em Belo Horizonte, vendendo o nosso “Ventre do mundo” de porta em porta, com a alegria de coautora, pois sabia que minha alma vestia os seus olhos pantaneiros, o seu jeito de enxergar todo ser humano como irmão e companheiro de jornada em nossa breve existência terrestre.

       Mamãe morreu em 19 de dezembro de 1989, faz 30 anos neste ano de 2019. Ela continua viva e aromatizando os meus versos e a minha prosa, tornando cada vez mais real o verso do poema “Orfandade”, que publiquei em livros e fixei em seu túmulo: “NÃO ESTÁS, MAS ESTÁS EM TUDO”.

      Carlos Lúcio Gontijo

      Poeta, escritor e jornalista

      www.carlosluciogontijo.jor.br

      18 de dezembro de 2019.