Quando quero contar sobre mim, são livros o que conto!

                                                 Carlos Lúcio Gontijo

       Dia 11 de março de 2014, se viva estivesse, minha mãe Betty Rodrigues Gontijo faria 90 anos. Ela nasceu em pequeno aglomerado no Mato Grosso, que hoje leva o nome de Guiratinga. Guardou a vida inteira um recorte de jornal que noticiava o seu nascimento como o segundo acontecido naqueles rincões do Pantanal Mato-grossense. Na realidade foi uma pantaneira a vida inteira, ensinando-me que o verdadeiro leito de um rio são os olhos das pessoas que vivem nos arredores de suas águas. Minha mãe Betty carregava na alma e nos gestos a mansidão e a umidade de florescimento de vida dos alagados pantaneiros.

     Não tinha muito estudo, mas sabia ler e escrever. Dos recursos levantados em seu trabalho de cabelereira, comprou a prestação os primeiros livros que eu li, como é o caso do “Tesouro da Juventude”, obra composta por uma coleção de belas e edificantes histórias. Minha casa tinha um punhado de bichos: pato, pavão, peru, marreco, coelho, porquinho-da-índia, galinha-d’angola, saracura, arara, tucano, papagaio, periquito, mico-estrela, porcos, um galinheiro, um enorme viveiro com mais de cem pássaros, um pequeno lago – enfim, era a miniatura do Pantanal que minha mãe trazia no peito.

       Na copa e na cozinha, latas cheias doces de laranja da terra, figo, doce de leite, mamão, pé de moleque, cidra, de raiz de mamão, arroz doce, melado, cocada, doce de abóbora, biscoitos, bolos, tortas… Não sei nem como ela arrumava tempo para tanta coisa, pois tinha suas freguesas de salão e ainda costurava. Quando tinha baile na cidade, ela muitas vezes atendia até meia-noite.

    Desprovida de toda e qualquer vaidade, mesmo sem sair de casa cultivou muitas amizades. Em Santo Antônio do Monte, onde foi sepultada no dia 19 de dezembro de 1989, tinha muitos amigos, principalmente entre as pessoas humildes. Preocupada com as questões sociais, fazia muita caridade. Os mendigos eram acolhidos em seu alpendre, onde ela lhes servia almoço, às vezes um café. Mantinha a geladeira (poucas casas dispunham de geladeira naquela época) sempre com muitas fôrmas de gelo, pois o médico da cidade Dr. Wilmar de Oliveira e até o Padre Paulo Michla poderiam aparecer em busca do produto, para auxiliar nas cirurgias realizadas na Santa Casa.

       E como todos nós somos o resultado de um feixe de gente dentro de nós, eu posso afirmar tranquilamente que a maior porção de ser humano que me habita é constituída de partes inteiras de minha mãe Betty. Observando-a vida afora, aprendi a não tolerar falsidade, vaidade, autoritarismo, falta de compaixão, ausência de piedade e tudo o mais que transformam a pessoa numa espécie de estrela solitária, que somente consegue se sentir segura e feliz se rodeada de gente obscura e sem brilho. Como costumava dizer minha mãe: “Filho, tem gente que quer ser a única estrela a brilhar na imensidão do céu que é de todos”.

     Obrigado minha mãe Betty por recolher os primeiros poemas que escrevi e escondi sob as dobras do colchão; obrigado, por me incentivar no primeiro livro, quando não tinha emprego, não contava com noite de autógrafo, nenhuma divulgação em meio de comunicação… Mas, ao invés de se apavorar e colocar-se na condição de calculadora de prejuízo, procurou me apoiar. Morávamos em Belo Horizonte e saímos os dois juntos, cada qual para o seu lado e seu canto.  Ao final vendemos toda uma edição e quitamos a dívida editorial antes do prazo ajustado na promissória da gráfica.

    Aprendi ali, naquele episódio de jovem poeta idealista, que tudo nesta vida tem preço e de alguma forma pode ser pago, mas amor verdadeiro e comprometimento entre mãe e filho é tear de laços inquebrantáveis e, mais que isso, impagáveis. E ainda mais importante, num mundo impregnado de exacerbado materialismo, é sublime lição de que em alguns casos a única recompensa é mesmo a invisibilidade e a imaterialidade licorosa do puro e divinal afeto. Como no verso do poema em que falo de sua morte, mãe Betty querida, “não estás, mas estás em tudo”.

       Carlos Lúcio Gontijo

       Poeta, escritor e jornalista

      www.carlosluciogontijo.jor.br

      04 de março de 2014.