Quando quero contar sobre mim, são livros o que conto!

Carlos Lúcio Gontijo

Estamos prestes a inaugurar o absenteísmo de Estado. Ou seja, muito em breve assistiremos a um governo que de nada cuidará e terá na explícita manutenção de braços cruzados a sua principal missão. Claro que haverá momentos em que ele estenderá as mãos: precisamos na hora de recolher os impostos que lhe garantam cobrir os gastos com a sua máquina burocrática – o mirante -, montada para apenas observar a paisagem.
Livrando-se de empresas estatais, terceirizando e sucateando serviços no presente, além de quebrar suas ligações com o passado através do aniquilamento de preceitos legais, (e morais) do direito adquirido e da estabilidade do servidor público (que, como bola-de-neve, envolverá em seguida os aposentados e a reforma previdenciária), o governo se torna absolutamente irresponsável por seus atos, outorgando a si mesmo uma declaração de menoridade tutelada por uma cega confiança nas leis de mercado, ainda lutando pelos sonhos do berço esplêndido da cultura inflacionária.
Dessa forma, o poder público recua no tempo histórico e reencontra-se com o denominado período regencial (1831 até 1840), quando D. Pedro I abdicou em nome de seu filho D. Pedro de Alcântara com apenas 5 anos. Como naquela época, o governo brasileiro se acha, agora, tutelado por elites que exercem o papel de regentes e condutores-mor tanto dos projetos econômicos quanto da filosofia administrativa. Pode-se dizer, a grosso modo, que a reforma agrária, negada ao campo, foi realizada na administração pública, com o governo confiando suas funções e atividades constitucionais a intermediários, empreiteiros, rendeiros, meeiros ou feitores.
Portanto, não é à toa que a educação, a saúde e a previdência social estão cada vez mais terceirizadas, com o Estado tudo fazendo para cair fora e abandonar os problemas (e o povo) sociais nas mãos da iniciativa particular. Certamente que os nossos políticos não são loucos de nascença, eles se tornam abúlicos por maioria de votos. A “unção” das urnas lhes sobe à cabeça como se fosse uma típica coroação monárquica, tornando-os príncipes e detentores de algum resquício do “poder divino dos reis”.
Por termos falado em insano-irresponsabilidade política, lembramos de projeto que tramita, em muitos Estados brasileiros, com a proposição de extinguir os manicômios de internação, o que nos parece ser mais uma daquelas medidas que visam tirar algum proveito das desgraça alheia que, infelizmente, é matéria-prima do trabalho e ganha-pão de muita gente, no caso os psicólogos, psiquiatras etc., que terão à mão uma clientela cativa (os que puderem pagar por sua assistência), enquanto os pacientes de famílias pobres ficarão ao deus-dará, colocando em risco seus familiares e toda a comunidade. Aliás, nunca se viram tantos loucos soltos pela cidade de Belo Horizonte afora, com muitos deles desfilando maltrapilhos e mesmo em completa nudez pelos passeios, jardins ou em plena rua, onde correm o risco de ser atropelados. Outro dia, uma mãe, de mais de 70 anos de idade, se viu obrigada a cometer, em defesa própria, o triste ato de matar o filho doente mental que com ela vivia. Também, há o caso de outro insano que, internado em hospital comum, em grave momento de depressão (conforme ora – e não reza – a lei antimanicômio), pulou a janela assim que ficou sozinho, por alguns instantes, no quarto hospitalar desprovido de grades, pois que não-preparado para receber doentes mentais.
Entretanto, aquela estranha lei acabará sendo realmente aprovada em nome da democracia total, invenção político-ideológica perto de cometer a propagação da falsa premissa de que os pobres miseráveis não devem ser alvo de amparo e preocupação, porque a desigualdade também é um direito concernente ao indivíduo, assim como a injustiça, a fome, a miséria, a falta de endereço, de emprego, de salário digno. Estamos, enfim, encaminhando-nos para a proclamação e elevação às hostes de direito constitucional o dever de desassistência aos que se acham aprisionados na marginalidade social, pois a nova filosofia nos ensina que, sob a ótica da cartilha neoliberal – a da democracia total -, tanto os pobres estão livres na pobreza quanto os abastados estão acorrentados a suas posses. E tudo deverá ficar do jeito em que se encontra, porque assim é que é natural e assim determina o processo seletivo do poder econômico engendrado pelos homens de eficiente má vontade com o destino dos excluídos, matéria-prima em carne e osso de tantas ideologias.
Tornou normal, nos dias de hoje, acudir o autor do delito em vez de consolar os familiares da vítima – uma façanha dos grupos de direitos humanos, que desconhecem a assertiva do filósofo político italiano Norberto Bobbio: “Quando a liberdade perde os limites, o próprio povo invoca o tirano”.

Diário da Tarde, 23 de novembro de 1995.