Carlos Lúcio Gontijo
É triste vermos as mais dignas missões e os mais nobres ideais povoados por interesses diversos daqueles que se aproveitam das agruras e sofrimentos alheios para alcançar seus objetivos, prejudicando até mesmo o encaminhamento de questões sérias, por temer a perda de seu emprego social, o seu templo, sustentado pelos carentes, pelos ignorantes, pelos alijados de toda oportunidade.
O Brasil se transformou num verdadeiro balcão de negócios com um açougue ao lado. São muitos os enfileirados nos corredores da morte, localizados em centenas de matadouros clandestinos espalhados pelo território nacional – como se a população fosse gado portador do vírus da vaca louca – disfarçados de hospitais, instituições públicas, casas de detenção, órgãos de segurança, sindicatos, assistência social e religiosa. Não há vontade política para criar fato novo e, assim, estamos assistindo à invenção de formas modernas de explorar a massa ignara, que á a matéria-prima do ganha-pão banhado em sangue de muitos que posam de defensores dos oprimidos e conduzem seus movimentos legítimos instruindo-os inclusive a usar crianças como se fossem escudos a serviço da radicalização que semeiam, na esperança de colher votos.
Dói-nos o índio rebaixado ao grau de peça de museu em carne e osso, ao lhe negarem a escola, o conhecimento e a cidadania, nivelando toda uma raça aos animais de estimação, para satisfazer meia dúzia de indigenistas, que têm pavor de ver bulida a sua fonte viva de experiências. Essa atitude, revestida de falso caráter humanístico-cultural, pode ser comparada ao absurdo de as nações civilizadas resolverem, repentinamente, vetar o desenvolvimento aos países do Terceiro Mundo, sob a alegação de que os querem manter como se encontram, para perpetuar a cultura pré-tecnológica, preservando seus aspectos estruturais rudimentares a fim de as ciências sociais terem material para estudos bem fundamentalizados. Certamente, não aceitaríamos essa discriminação, pois negar a qualquer povo o direito de acesso à absorção dos progressos e conquistas da humanidade é o mesmo que destruí-lo com a bomba mortal da ignorância permanente.
Falando em ignorância, exatamente o fator que mais pesa para a constatação da renitente existência de tantas endemias entre nós, acompanhada de elevado índice de mortalidade infantil, lembramos que o ser humano, sem a devida educação, cria condições para o florescimento de moléstias e doenças através da falta de noções de higiene e da dificuldade para eleger prioridades (fenômeno que acontece até com o governo na administração de suas escassas verbas). As pesquisas do IBGE, freqüentemente, nos apontam essa realidade, mostrando-nos relatórios em que verificamos que moradias, que possuem rádio, televisão e vedeocassete, não dispõem de banheiro nem filtro. E isso não é destino – é descaso de um governo voltado para a desinformação e a não-democratização do acesso à escola. Dessa forma, não cairíamos em erro se afirmássemos que grande parte da população brasileira ainda é meio-índio, pois continua, ingenuamente, trocando o ouro pelo espelho.
E por falar em trocar, é interessante observarmos que, do mesmo casulo de formação educacional nascem vocações completamente diferentes e até mesmo antagônicas, se bem que os extremos se encontram. Senão vejamos: a socióloga Gabriela Leite, formada pela USP e moradora em Brasília, sob a desculpa de que, desde a adolescência teve altos problemas com tudo que era proibido, fez uma clara opção pela prostituição. Já o presidente Fernando Henrique Cardoso, também diplomado pela Universidade de São Paulo, sempre derramou sua libido pelo poder. E, ao final da história, cada um abraçou o que bem quis abraçar e ambos os sociólogos parecem ser felizes no Planalto Central: um trabalha com o físico (corpo) e o outro com o fisiologismo (política), aplicando a prática comum do jogo de cintura, sinônimo de contorcionismo e flexibilização, corporal ou mental, conforme o caso.
Diário da Tarde, 25 de abril de 1996.