Carlos Lúcio Gontijo
“O marechal Humberto de Alencar Castelo Branco foi um herói da Guerra do Paraguai, compositor do hino nacional brasileiro, que assumiu o governo no país após uma revolução de grupos esquerdistas”. Isso bem que poderia ser letra de mais um samba do crioulo doido, mas não é. Infelizmente, essa frase é uma montagem das respostas obtidas em pesquisa junto a estudantes do segundo grau, na cidade de São Paulo, por ocasião do último aniversário do controvertido movimento militar de 31 de março, que, talvez pela proximidade com o popular “Dia da Mentira”, 1º de abril, jamais deixou de situar-se entre algumas verdades e um amontoado de falta de esclarecimentos.
A lamentável situação do ensino brasileiro, onde as crianças completam, em média, apenas quatro anos na escola, é responsável pelo baixo poder de mobilização da sociedade constantemente tripudiada e dirigida por uma elite que vai da empresarial, política e religiosa até à indisfarçável elite sindical. E os dados desastrosos de nosso descaso para com a educação não param no ensino primário, pois no secundário o índice de matrículas não passa de 30%, enquanto a média na sofrida América Latina é de 54%. Porém, o governo do Brasil, estranhamente, subsidia a universidade para os ricos, onde os gastos públicos por estudante universitário são 26 vezes maiores que no ensino básico, que caiu nas mãos e caprichos de particulares, que vieram dar-lhe um toque final de elitização através do alto custo das mensalidades.
Dizemos apenas complementar o caráter de elitização, porque o planejamento estrutural do ensino brasileiro, principalmente o básico-elementar, ou seja, o primário, coloca como parte indispensável de sua prática a participação e o auxílio dos pais, que, comprovadamente, na sua grande maioria, não têm condição financeira para arcar com o pagamento de professor particular nem podem exercer o papel de auxiliar os filhos nos chamados deveres de casa, tanto por falta de formação educacional apropriada quanto por falta de tempo, pois não raro pai e mãe são obrigados a trabalhar fora para o sustento do lar.
É por essas e outras que não se pode admitir que existam no Brasil grupos que defendam o gigantismo de um governo-empresário e perdulário por extensão, fazendo com que o País administrativamente não cuide de setores cujas características fujam do retorno imediato tanto no sentido do lucro econômico quanto no tocante à popularidade eleitoreira. Assim, os escassos recursos do Tesouro Nacional foram (e são) carreados para cobrir déficits, estouros, rombos, desfalques e fraudes no olimpo das estatais de meia-dúzia de funcionários privilegiados e distantes das intempéries que acompanham os empregados das empresas privadas, também dependentes das marchas e contramarchas de nossa malfadada economia. Enfim, tudo isso afasta e impossibilita ao governo brasileiro o investimento pleno na saúde e na educação, que são setores onerosos e de resultados a longo prazo, que costumam ser colhidos a pelo menos uma geração depois, enquanto a eleição está sempre tão próxima.
O Brasil, para o departamento de pesquisas do Banco Mundial, é um país com desigualdades sociais comparadas às de Honduras ou Serra Leoa; com distribuição de renda pior que a da Índia; mortalidade infantil superior à de El Salvador e Colômbia; e na evasão escolar “conquistamos” uma perda só menos baixa que a da Bolívia, exatamente porque a escola brasileira não fala a linguagem de sua clientela mais pobre. Ou seja, elitizou-se nos custos e nos métodos.
A bem da verdade, em matéria de educação, o Brasil está ao lado da Indonésia, Paquistão e Bangladesh, situando-se assim entre os dez países que, juntos, arcam com 73% dos analfabetos de todo o Planeta. Por desestímulo, pobreza, distância da escola ou necessidade de trabalhar para ajudar no sustento da família, de cada cem alunos matriculados na primeira série, cinqüenta passam para a segunda e apenas dez concluem a 8ª série. Somos 18 milhões de analfabetos, cerca de 18,7% da população com mais de quinze anos. Isso sem nos alongarmos da descrição do quadro dos semi-alfabetizados cuja capacidade intelectual demonstramos na abertura deste artigo.
Na realidade, estamos vivendo o pior dos autoritarismos, onde a classe dominante, tanto no sentido do capital quanto pelo lado cultural, aproveita-se da desinformação e ignorância do povo para manter-se no poder. A democracia, comprovadamente, tem sido usada muito mais para legitimação de administrações autoritárias através do voto do que caminho político capaz de levar a grande massa de desprivilegiados às liberdades jurídicas, sociais e econômicas inscritas nas constituições.
Nossa democracia carece do devido alicerce educacional, mecanismo indispensável não apenas para tornar verdadeira a expressão da vontade popular como também para regular o processo de cobranças e fiscalização sobre os eleitos para os diversos cargos políticos, de vereador a presidente da República. A democracia é um processo tão mais dispendioso e caro, cheio de tropeços e decepções, quanto mais a educação é falha e ineficiente.
Até aparece, vendo os índices que apontam a situação de nosso estágio educacional, que nossas autoridades se “laotsearam”. Ou seja, praticam o conselho do filósofo chinês Lao-Tsé, nascido na China a 604 anos antes de Cristo e que pregava aos governantes: “Enfraquecei os espíritos e fortificai os ossos”. Ou mais claramente: educar o povo é arruinar o Estado, colocar em perigo o poder totalitário, dependente da ignorância das pessoas, que subjugadas culturalmente não conseguem exercitar em plenitude a sua cidadania.
Dessa forma, vamos chegando ao terceiro milênio sob o sono político de um Congresso sem “quorum” e à maneira do “Curupira”, um garoto indígena, de cabeleira vermelha, feito bandeira de radicais, protetor das árvores e da caça, senhor dos animais que habitam a floresta e que, segundo a lenda folclórica, tem os pés virados para trás.
Diário da Tarde, 26 de abril de 1994.