Quando quero contar sobre mim, são livros o que conto!

                                                    Carlos Lúcio Gontijo

 

Iniciamos nosso artigo com os versos do poema “Mérito”, que publicamos em 1993: Não há magia na luz do acontecer/ Revolucionário não se perde em mágoa/ Todo amanhecer tem seu preparar/ Pois Deus somente salga a água/ Após seu encontro com o mar…

Nossa sociedade se encontra impregnada de mazelas ditatoriais, onde as pessoas só abrem seus ouvidos para receber elogios ou acatar ideias favoráveis aos seus propósitos inconfessadamente tidos como definitivos e resolvidos.

Não é à toa que renomados intelectuais e jornalistas responsáveis pelos artigos de opinião dos grandes jornais terminaram por vender sua “pena” aos proprietários, chegando ao ponto de antecipar o pensamento dos patrões – os chamados tubarões da mídia nacional -, aos quais pretendem agradar de todas as formas, ainda que maculando o seu conceito profissional junto aos leitores. Infelizmente, nossos jornais de maior expressão (e até blogs e sites) são hoje veículos de comunicação de uma nota só; ou melhor, de uma letra só.

Os debates no Brasil, principalmente os de cunho político, têm a perversa tendência de sempre desaguar na falta de apresentação de propostas, pois a cultura autoritária, mergulhada em radicalismo, não tolera discussão e opta sempre pelo silêncio, como se pudesse haver progressão no mundo da proposição de ideias sem a devida confrontação de contrapontos, uma vez que, muitas vezes, a premissa aparentemente errônea pode conter o fio de luz que faltava para a concretização de uma solução.

Vemos avançar a marcha apartidária dos indignados Europa afora, enquanto entre nós as discussões costumam gerar mais calor do que claridade, mais hipocrisia que sinceridade, onde os interlocutores caminham sobre a trilha obscura da simples demonstração de frágil erudição, com os núcleos tribais demarcando o seu quadrado, a sua indisposição para o diálogo e o contentamento carnavalesco com a parada pelos gays ou pela liberação da maconha.

Acreditamos que ainda estamos longe de erigir uma visão social da realidade brasileira alicerçada em benefício de todos e não de determinados grupos. Não existe entre nós a obediência ao instituto do mérito como norma de julgamento e promoção individual do ser humano. O que há é a lei do mais forte, da qual fazem uso tanto os bandidos do narcotráfico quanto o honesto trabalhador de terno e gravata na sociedade tida com organizada e de bem, especializada no famigerado tráfico de influência e no histórico apadrinhamento.

É por essas e outras que a Academia Brasileira de Letras (ABL) se nos apresenta capaz de cometer o desvario de outorgar a medalha Machado de Assis ao jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho, promovendo academicamente um retrocesso à pátria de chuteiras e ao pra frente Brasil sem livros nem cultura de qualidade.

 

Ao bem da verdade, é bom que se diga que a filosofia autoritária está por todos os lados, a começar pelo vezo social da explícita aceitação e louvor à prática do “levar vantagem em tudo”, em nome do qual se desrespeita a indispensável observação ao predicado e ao mérito de cada cidadão.

Em ambiente assim desconcertante, até os laureados “imortais” da ABL se dão ao direito de jogar para a plateia ignara e escancarar as portas da Casa de Machado de Assis ao pagodeiro Ronaldinho em fim de carreira futebolística e praticante de boemia distante do incomparável Noel Rosa ou da inofensiva malandragem cantada por Moreira da Silva.

Enfim, sem a incondicional elevação do mérito de cada indivíduo na sociedade, o que vivenciamos é uma democracia que usa a unção do voto nas urnas para a legitimação de atos administrativos ditatoriais da República, enquanto o autoritarismo corre solto na maioria de nossas instituições públicas e privadas mais importantes, com os detentores de poder e mando destilando o seu rosário de maldades, impropriedades e interesses pessoais prejudiciais à coletividade, sob a absoluta certeza de que a gestão ditatorial dispensa a obediência ao mérito, requerendo apenas o gosto do ditador e não o desejo dos cidadãos que constituem a nação e vêm cometendo o equívoco de não colocar a sua indignação em marcha, a fim de que a mudança efetivamente aconteça.

 

Carlos Lúcio Gontijo

Poeta, escritor e jornalista.

www.carlosluciogontijo.jor.br