Carlos Lúcio Gontijo
Na mesma medida em que se deu a perda da sensibilidade, com a falta de leitura e o desprezo pelas ciências humanas, assistimos ao avanço de abandonos explícitos, como é o caso do aumento do número de cachorros atirados nas ruas das cidades por seus donos.
Não faz muito tempo, estava sozinho na sede da Secretaria de Cultura de Santo Antônio do Monte, esperando a chuva passar para que eu pudesse ir embora. Já havia fechado todas as janelas, mantendo apenas a porta de entrada ao antigo prédio da estação ferroviária semiaberta, deixando-me uma pequena fresta pela qual observava o cair da chuva.
De repente, em meio ao temporal, parou uma Kombi malconservada, com a lataria toda carcomida por ferrugem, da qual o motorista retirou dois cachorros que foram jogados no meio da praça. Eles saíram correndo como se estivessem tomados por alguma loucura. Contudo, não era para menos, os pobres coitados nem sabiam aonde ir buscar abrigo em local no qual jamais haviam estado.
Ainda hoje aquela cena me vem à memória toda vez que vejo um punhado de cães abandonados por seus donos perambulando pelas ruas das cidades, que na maioria das vezes não contam sequer com um canil municipal, ampliando os transtornos provocados pelo problema.
Mais ou menos parecido com o drama sem solução dos cachorros abandonados nas cidades é a triste constatação de que o Brasil se vê às voltas com um Congresso malformado, que conseguiu juntar em uma legislatura tudo o de ruim, parecendo curva de rio, onde todo o lixo se amontoa.
Detectamos, no caso, que na questão dos parlamentares quem está abandonado é o Brasil, que caiu nas mãos de congressistas com complexo de vira-latas, ou seja, que se puseram a revirar os cofres públicos e a surrupiar os parcos recursos da nação brasileira. Claro que não são todos, mas a regra vai tragando as exceções, uma vez que os que se nos apresentam como corretos e cumpridores de seus deveres não se dispõem a enfrentar o corporativismo reinante e vir a público denunciar seus pares mergulhados na corrupção e incapazes de ter qualquer compromisso com a construção de um país mais justo e menos desigual.
Vivenciamos então a lamentável realidade em que parlamentares e autoridades constituídas se juntam na perpetração de uma luta do poder pelo poder, traçando um caminho em que o voto e a participação popular são dispensáveis, apesar de em um primeiro momento contarem com o apoio de alguns desavisados que saem às ruas sob o convencimento cotidiano articulado por uma mídia partidarizada, que numa segunda fase cuidará de projetar a desmobilização, guardando silêncio sobre o descalabro intencionalmente colocado em prática.
Enfim, parece-me que deste o dia em que vi aqueles dois cachorros serem deliberada e friamente abandonados em meio a intenso temporal, o tempo foi congelado e a única paisagem que vejo das janelas Brasil afora é uma matilha de cães perambulando pelas ruas malcuidadas e dourados ambientes congressuais. Ou seja, os cachorros de todas as raças e matizes estão à solta, enquanto o povo vai sendo encarcerado e jogado de volta às suas mazelas, masmorras e pelourinhos seculares.
Carlos Lúcio Gontijo
Poeta, escritor e jornalista
26 de abril de 2016.