Quando quero contar sobre mim, são livros o que conto!

O que me importa nesta vida é a longevidade dos sentimentos. Minha poesia tem o máximo gosto feliz (que se pode ter) sob a certeza lancinante da morte. Tais pensamentos vieram-me à mente ao ler o livro “Geraldo Vandré – A vida não se resume em festivais”, de Dalva Silveira, que num misto de ciências sociais, história e música popular brasileira, discorre sobre a carreira artística do compositor da música “Caminhando”: Vem, vamos embora, que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

A obra de Dalva Silveira me veio às mãos por intermédio do psicólogo Robson Gurgel e sua esposa Penha. Como estava com um punhado de livro para ler e envolvido com a reforma da plataforma de meu site, só me debrucei na leitura do “Geraldo Vandré” há poucos dias, quando então me vi enlaçado pelo enredo, pois veio ao encontro da minha experiência de autor desde 1977, ano em que lancei meu primeiro livro.

Sempre percebi que a ditadura militar (1964 a 1985) fez um estrago colossal na mente da população brasileira, com muitos cidadãos confundindo que sua trajetória de vida bem-sucedida teve como responsável o autoritarismo; não observando que sua existência foi construída, apesar do regime antidemocrático, devido à sua força de vontade e ao otimismo de sua juventude. Essa visão distorcida daquele momento histórico é que conduz muitos senhores de cabeça branca a reivindicar a volta do regime militar, como se assim pudessem recuperar a jovialidade de outrora.

Os agentes da tortura a serviço do autoritarismo sabiam muito bem que artistas completamente envolvidos com a sua criação e compromissados com os avanços sociais em prol de sua gente, como era o caso do idealista compositor Geraldo Vandré, não resistem às ameaças impostas ao seu trabalho intelectual. Ou seja, a perseguição e o temor de ter sua música silenciada se transformaram em censura real para o músico, que sentia no lombo de sua mente o peso de uma chibata invisível.

Sob o título “O exílio: crise e resistência”, Dalva Silveira transcreve que Denise Rollemberg conta em livro que “a estrutura cultural e psicológica e a personalidade do exilado serão essenciais na compreensão da maneira como o exílio será vivido”. Rollemberg afirma que, além dos aspectos psicológicos, outros devem ser analisados, como, por exemplo, a conjuntura e a circunstância histórica em que se deu o exílio. No caso, Vandré teria se autoexilado em razão das perseguições políticas, no auge de sua carreira, alcançado através da música ‘Caminhando’. Sendo assim, o exílio representou, além da perda das raízes e da identidade, do encontro com o abandono e a incerteza, o impedimento de vivenciar esse sucesso, obrigando-o a abrir mão da concretização de seu sonho.

Dalva Silveira passa-nos em seu livro, fruto de grande pesquisa, a ideia do quanto um regime ditatorial é capaz de bulir com a inteligência emocional das pessoas, pois Geraldo Vandré não ficou preso nem foi torturado, “mas para um cara como ele, se lhe tivessem arrancado três unhas, dado choques elétricos, teria sido menos grave do que a castração de seu espaço artístico”. “O Geraldo era fruto de uma vontade ferrenha de ser um artista popular, no sentido de reformular as expressões culturais do povo e entregá-las de volta. Deu a vida dele para isso, entregou-se totalmente à sua arte”.

Escancaradamente, Vandré (que tinha como característica ser uma pessoa muito reservada) se comunicava com a sociedade brasileira através de sua música (compor era a sua forma de conversar) e, com o advento da ditadura militar, ele foi tomado por uma profunda tristeza, que lhe inibiu totalmente a vontade de criar beleza musical. Temos aí a evidência que Vandré era capaz de transformar o lamento das agruras sociais em poesia e música, mas se deixou naufragar na dor diante das ondas de violência que foram impostas ao Brasil pelo autoritarismo sombrio, interrompendo precocemente sua brilhante carreira, que agora ganha mais um clarão de eternidade com o excelente livro de Dalva Silveira: “GERALDO VANDRÉ – A vida não se resume em festivais”.

Carlos Lúcio Gontijo

Poeta, escritor e jornalista

www.carlosluciogontijo.jor.br

6 de outubro de 2023